Artigos de Jornais
A Embaixada Lítero
Musical
de Villa-Lobos,
em
Botucatu
Publicado
originalmente
na
Revista
Boca
de
Cena
No ano de 1931 - ano da
consolidação da nova ordem
implantada a partir do programa revolucionário
de
30 — a cidade de Botucatu começou a ser administrada por um
prefeito
indicado
pelo
interventor
federal
nomeado
para S. Paulo,
Coronel João Alberto. Vivia-se um momento muito especial. Depois de
abalos e incertezas, os veteranos revolucionários locais haviam
conseguido indicar o civil Leônidas da
Silva Cardoso para o cargo. Tenentista de
primeira hora, havia participado da ocupação da cidade quando a “coluna
paulista” transladara-se da Noroeste para a Sorocabana, utilizando o
entroncamento ferroviário de Rubião Junior. Naquela ocasião um pequeno
grupo de homens, entre eles Leônidas, dera suporte para a ocupação
liderada pelo tenente Juarez Távora que, durante 10 dias, garantiu que
as tropas paulistas pudessem rumar, com tranquilidade, para a alta
Sorocabana, buscando a fusão com a coluna riograndense para, ao final,
formar com ela a Coluna Prestes/Miguel Costa.
No plano
político-institucional a combustão era ainda maior. Moravam na cidade
nada menos que quatro ex-combatentes dessa
coluna, veteranos da longa marcha encetada pelo Brasil e que servira,
entre outras coisas, para manter viva a chama de contestação à velha
ordem da primeira República: Damião P. Machado, do comando daquela
coluna, exercendo sua profissão de
advogado no Forum; Alfredo Bueno, então diretor de futebol da AAB e
funcionário da Prefeitura; Tenente Nelson de Mello, nomeado pelo
Governador como Delegado Regional de Polícia e
um
combatente
do
qual
ainda
não
se sabe o nome.
Esse núcleo formava o
centro revolucionário e, solidário, buscava manter-se à tona numa
cidade onde o poder político estivera sempre concentrado em poucas
mãos: no império, sob controle dos fundadores da cidade e na república,
depois de um ligeiro período de alternância, sob controle de Cardoso de
Almeida.
A população local
acompanhava os fatos com curiosidade. Os protagonistas dessa história
podiam ser vistos na rua e se percebia que
os acontecimentos locais possuíam um encadeamento cujas conseqüências
podiam, também, ser vistas, com clareza,
nas mudanças gerais que os fatos obrigavam. Assim, subiam ao poder, em
todas as esferas, os políticos que a cidade acostumara a ver
achincalhados. E desciam as expressões mais consagradas da primeira
república, entre elas o botucatuense Cardoso de Almeida, exilado em
Paris (onde iria morrer, quando para ali voltou em seu segundo exílio,
este, após a Revolução de 32).
A intelectualidade
botucatuense, formada quase toda ela por
professores do ensino médio local, cultivadora da música, da escrita e
dona das profissões que envolviam o trato com a ciência, como os
advogados, os médicos, os engenheiros, consumia as idéias que ganharam
força na época: uma volta aos valores nacionais, com ênfase na cultura.
Uma época como poucas, onde a juventude iria se aproximar dos padrões
da produção cultural nacional e se engajaria nas ondas de retorno à
alma dos brasileiros.
A música era um desses
campos. Entusiasmado pelos novos momentos, o Maestro Heitor Villa
Lobos, alimentava o cotidiano com suas composições baseadas em temas
nacionais, seus hinos revolucionários e suas
harmonizações
tupiniquins.
Converteu-se
numa
referência
para
os músicos
e intelectuais do país. .
Nesse quadro é que surge a
caravana de artistas de Heitor Villa-Lobos, em
excursão por S. Paulo, “para propagar a música brasileira pelas cidades
do interior”, como ele mesmo dizia. O consagrado artista pegava o bonde da História, para realizar as idéias
que lhe atormentavam o espírito desde a Semana de 22.
Sua vinda para Botucatu,
como parte de sua excursão ao interior paulista, foi marcada para o mês de agosto daquele ano e, para
recebe-lo, tomando à frente, estava o professor Alfredo Franklin de
Mattos, mestre na matéria de música na
Escola Normal de Botucatu.
É verdade que a cidade já
sabia da vinda do compositor desde janeiro, mas
os
preparativos
só
começaram
mesmo
em
junho. Nesse mês os salões do
mais tradicional clube da cidade, o Gabinete Literário e Recreativo,
simplesmente “O Gabinete” (hoje prédio da Radio Emissora), recebeu a
primeira leva de estudantes para o início dos ensaios, do que seria
chamado “o maior coral que Botucatu teria visto”: Octavio Vaz Camargo,
Lourenço Dias Machado, Antonio Popolo Netto, Benedicto Jordão, Mario de
Campos Leite, José Pereira de Andrade, Antonio P. Machado, Sebastião
Oliveira, Manuel Ferreira Dias, Humberto Funari, Juventino Xavier,
Antoninho S. Freitas, Alberto Losi, Antonio Spencieri, Alcântara
Rodrires, Junil Pegnelli e Nelson Mattos.
A intelectualidade local
estava consciente do momento que viveria e fazia eco aos objetivos do
compositor, estimulando a cidade a acompanhar, suas apresentações.
Ainda
em
junho,
mostrando
o
espírito
dos envolvidos no assunto, Nelson
F. de Mattos escreveu no Correio de Botucatu: “...esse genial artista
patrício compreendeu a necessidade que tem o Brasil de mostrar o que
possue em arte musical...a nossa gente tem a sua música, porém como bem
já disse Villa-lobos, ella a desdenha para dar entrada à música
“yankee”, que se vem infiltrando em nossa sociedade atravez dos
“charlestons e black-bottons”.
O periódico emenda com a
letra do Hyno Revolucionário, de autoria de Villa-lobos...” para ser
aprendido pelos alunos de nossas escolas e cantado na grande exortação
a Villa-lobos: “Pátria! Teu povo feito
cohorte, cheio de ardor, cheio de amor, surge, vibrando do sul ao
norte, num grande gesto libertador: à sombra illustre d’aurea bandeira,
que se desfralda sobre a nação, é cada soldado heróica trincheira,
desta cruzada de redempção! ”
E mais ensaios no Gabinete
e mais hinos para a criançada das escolas! Agora era o “Prá frente ó
Brasil!”. E mais a biografia do grande compositor, reproduzida em algum
milhares, para ser aprendida nas escolas: “Quem é Villa-lobos?
Villa-lobos é fruto de uma épocha e do seu ambiente e si sua música é
nova não é porque isso resulta de um processo ou de um artifício; é
porque se dá ao Universo, o mundo musical brasileiro, suas imensas
reservas de matérias acústicas, inéditas, tipicamente do Brasil,
colhidas na sua máxima pureza, expresssa com uma impulsiva verdade
interior...”
Julho foi consumido com os
preparativos. O Maestro chegaria na tarde de 14 de agosto e seria
recebido na Gare da Sorocabana. Sua programação incluiria uma audição
no Cine Teatro Espéria, um encontro com professores e alunos do Colégio
Santa Marcelina, chamado àquela época “Dos Anjos” e um encontro,
também, com professores e alunos da Escola Normal.
E assim se deu. Na tarde
14 de agosto daquele ano alí estavam todos na Gare: O centro tenentista
- no comando da cidade, com Damião e Leônidas à frente,
um contingente enorme de alunos e duas comissões que
“acompanhariam os artistas a todos os lugares”: professoras Arminda
Roubaud, Olga Martins, Iracema Martins, Maria Dinucci, Alice Vilas
Boas, Nícia Camargo, Isabel Torres, Carula Torres,. Jenny Pinheiro
Machado e o senhores, dr. Antonio Fernandes Villas Boas, prof. Salvador
Assumpção, dr. Luiz Duprat, Trajano Pupo, prof. Gastão Pupo, prof.
Genaro Lobo, prof. Afonso Celso Dias, prof. Pedro Leonel,
prof. Silvio Galvão, dr. Sebastião de Almeida Pinto,
prof. José Amaral Wagner, prof. José Martins, Francisco
Reis
Baptista,
Euclides
Pinto
da
Rocha,
padre Salustio Machado e o
jornalista Deodoro Pinheiro Machado.
Nesse dia as entradas já
estavam todas esgotadas. Frisas e poltronas, estas em número de 300, já
estavam vendidas há dias, para a única apresentação da Excursão
Villa-Lobos. O velho Teatro Espéria, construído na década de 80 do
século passado, viveria a que seria, talvez, sua última grande
apresentação de gala. Construído em madeira, no seu corpo principal, o
Espéria foi consumido por incêndio, 20 anos depois. Mas, por aquela
época o evento coroou de glória uma nova camada de gestores municipais,
em todos os planos. E os jornais derramaram-se em elogios, no dia
seguinte: “ a selecta e numerosa platéa que enchia as dependências do
Espéria delirou hontem ouvindo exímios intérpretes de uma música
elevada... Villa-lobos no violoncelo e nas impecáveis composições;
Souza Lima, o pianista sublime; sra. Nair Duarte Nunes, interpretando
docemente canções lindíssimas; e a sra. Lucillia Villa-Lobos, com o seu
extraordinário acompanhamento ao piano - todos enfim souberam empolgar
a platéa que, por sua vez, consagrou com os seus aplausos sinceros,
enthusiásticos e frenéticos, os executores do magnífico programa”.
Nos dias que se seguiram,
o maestro perambulou pela cidade. Foi aos jornais locais e cumpriu o
restante do programa com outras duas
visitas. A primeira ao Colégio dos Anjos, no dia seguinte à noitada do
Espéria. Alí ouviu o coral de todas as alunas do Santa Marcelina,
discursou e tomou um “lunch”. No dia 17 estava lá
no
salão
nobre
da
Escola
Normal.
Ouviu o orfeão ensaiado pelo professor
Franklin e os discursos dos professores Wagner , Architiclinio dos
Santos e dos alunos Adolpho P. Machado - em, nome do Grêmio 16 de maio
e senhorita Leontina Cardieri. Falou ao final... “ incitando a mocidade
normalista a colaborar na sua obra patriótica”.
E dia 19
partiu. Mas deve ter gostado do professor
Franklin, porque, no mês de setembro, voltando pela mesma Sorocabana,
desceu em Botucatu para visitá-lo. E ficou mais dois dias. Ele e sua
esposa, Lucíllia. Uma curta nota no Correio nos dá conta do que ocorreu
então: “Seguiram ante hontem (13/09), com destino à capital do Estado,
o senhor Heitor Villa-Lobos, exímio compositor brasileiro, e sua digna
senhora. Durante o dia de domingo último o grande artista executou na
residência do senhor professor Mattos, diversas peças ao violoncelo,
com a presença de diversas educandas do Collegio dos Anjos”
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