Rua Curuzu


Uma rua
que poderia ser chamada Itália

 Os imigrantes Italianos, e de outras nacionalidades, mantinham-se ligados às fazendas de café através de contratos, firmados quando aportavam ao Brasil. Uma boa parte deles, no entanto, tão logo os primeiros contratos foram vencendo, preferiram mudar-se para os lugarejos mais próximos. No município de Botucatu esses lugarejos rurais eram Vitoriana, Faxinal, Guarantã, Espírito Santo do Rio Pardo, Prata e São Bom Jesus do Ribeirão Grande.

Nesses lugares, dispostos a dar novas perpectivas para seus filhos, foram se estabelecendo nos mais variados ramos de atividades ou profissões. Escolheram, também, fixar-se sede do município - a cidade - e espalharam-se pelos bairros já existentes na época: Bairro alto, Tanquinho, Lavapés, Lavradores e adjacências, como também, pelas principais ruas do centro, entre elas a Curuzú.

Nenhuma rua daquele período tinha calçamento. Eram poeirentas, na seca, e lamacentas quando as chuvas chegavam. Uma estreita calçada era o acabamento dessas ruas e, forradas com placas de arenito vermelho, davam mais conforto aos passantes, que deviam, ainda, desviar dos animais amarrados às portas das vendas e armazéns.

Por volta da última década do século XIX, quando os italianos começaram a se estabelecer mais intensamente na cidade, a Curuzú disputava com a Riachuelo (atual Amando) a preferência para os investimentos. Havia uma razão para isso: tendo prevalecido como a via principal que comunicava o centro primordial (atual Praça Cel. Moura), com o centro administrativo da época (atual Emílio Peduti, ou Bosque), a Riachuelo revelou-se distante das duas entradas principais da cidade, por onde afluía a grande massa de colonos das fazendas do leste e sul do Município. Ao contrário disso, a Curuzú, considerada no seu trecho mais alto (proximidades do cruzamento com a Visconde do Rio Branco), apresentava-se com vãos ainda não ocupados, chácaras comunicantes com a Do Sapo (depois, Rangel Pestana e disposta em primeiro plano para os que chegavam das fazendas. Por essa razão pareceu aos imigrantes que, para residir e montar seu negócio, aquela seria a melhor opção. E, então, com o dinheiro acumulado nos seguidos anos de colheitas e trabalho  árduo, compraram suas primeiras propriedades na cidade, na Curuzú.

Na década de 90, quando a Curuzú parece ter sido considerada a prioritária para os novos investimentos, mesmo novas empresas, abertas na Riachuelo, mudavam-se e reapareciam algum tempo depois, ali, para consolidar-se por um longo tempo. Para a Curuzú foram os armazéns, as farmácias, as residências e até a Agência Consular Italiana.

Quem melhor descreveu a intensa atividade comercial e a presença de italianos na Curuzú, foi a acadêmica Elda Moscogliato, descendente de italianos que ali foram residir, numa memorável série publicada pelo Jornal A Gazeta de Botucatu:

"Nesse pequeno-grande mundo fabuloso excediam os italianos, que, numa reverente saudade temos a honra de aqui mencionar, obedecendo mais ou menos a localização do Lavapés ... Biquinha, em ambas as calçadas de cima e de baixo: Galerani, Canni, Cavalcanti, Ferrari, Gasparini(JoÆo), Paganini (Primo), Pauletti, Botti, Ambrosini, Fioravanti, Torelli, Pedretti, Varoli, Venditto, Aversa, Cesário, Maffei, Nardini, Tognozzi, Fattori, Grecco, Fazzio, Magnani, Moscogliato, Paganini (Ricieri-Rosa), Dal Farra (Baptista), Dal Farra (Gastão), Stumpo, Damatto, Villa, Tortorella, Tillio, Scripilliti, Michelucci, Lofiego, Gasparini (José), Nigro, Barcarolli, Baptistão e Vitti... A atividade humana pululava entre armazéns (Canni, Botti, Aversa, Lofiego); dep¢sitos de cereais (Fioravanti); açougues (Avallone e Vitti); sapatarias (Torelli, Greco e Tortorella); barbearias (Nigro, Moscogliato, Rafael Avallone); mercearias  (Michelucci); alfaiatarias (Zagottis, Nigro, Paganini, Gasparini José); ourivesaria (Giuseppe Pedutti); costureiras (Selma Zeugner, Regina Pauletti, Florinda Sartori, Mimi Knuppel); folheiro (Stumpo); fotógrafos: Garcia (Emílio pai e Progresso, filho); e a multidão de operários das Indústrias Bacchi, Lunardi, Blasi...Por largos anos funcionou na Curuzú, a Fábrica de Bebidas e Licores de Aleixo Varoli, com seu famoso licor de eucalipto, premiado com Medalha de Ouro na Exposição Internacional de Turim - Itália, em 1921, cuja receita se perdeu, infelizmente".

Com os estabelecimentos comerciais, dividiam o espaço da Curuzú, as residências. Quase todas, com longos quintais, onde não faltava um grande vinhedo. Fazer vinho era outro dos hábitos dos habitantes da Curuzú daquela época. A coleta, o esmagamento e a fermentação eram tarefas de todas as famílias e de muitos vizinhos. E os parreirais faziam as vezes de um segundo lugar para receber velhos amigos. Hábito antigo, incorporado pela imigração italiana ao cotidiano local, o cultivo da uva e a fabrico do vinho, para consumo próprio ou para a venda, desapareceu por completo, em Botucatu.

As casas, construídas no alinhamento da rua, abriam suas janelas e portas, francamente, para uma via que, embora efervescente, assistia sua noite ser iluminada pela tênue luz do lampião a gás ou pelas mortiças lâmpadas dos primeiros tempos. Salas grandes, portas que deixavam passar a luz interior e um dedilhar constante dos quase 10 pianos, que a professora Elda via distribuidos  pelos endereços.

Como se cozinhava com lenha, os carroceiros e lenhadores, agrupavam-se todos, por volta das 10 horas de todas as manhãs, oferecendo às residências sua carga. Era um mundo deles (italianos na maioria) e a Curuzú deixava levantar uma densa poeira, quase nunca diluída no todo. E ficavam por, ali, os estrumes dos cavalos ou outros animais que puxavam as carroças, aproveitados pelos moradores para adubar suas hortas e vinhas.

O mesmo ocorria aos sábados e domingos, quando, vindas das fazendas dos arredores, as famílias prendiam seus animais nas proximidades dos armazéns e botequins e, lá pelas tantas da tarde, sob sol escaldante, um forte cheiro, oriundo do estrume aquecido pelo sol que, misturado à urina dos cavalos, tomava conta de toda a rua. Essa era a Curuzú da época.

Curuzú de forte cultura italiana, como ainda nos lembra a professora Elda: "Vindas da Itália, contratadas pela Colonia Italiana de Botucatu, aqui viveram por muitos anos, as mestras Nilde e Violeta Terruggi, que na Escola Dante Alighieri, lecionaram cursos de língua italiana... A atmosfera, caracteristicamente italiana da Curuzú, estimulou a formação de conjuntos e orquestras que brilharam, ao seu tempo. Dos primeiros imigrantes aqui chegados, destaca-se o músico Primo Carnitti, de uma família de músicos, como também a família Frezza, portadores de títulos de Teoria e Composição obtidos em Conservatórios pátrios, formaram uma grande legião de discípulos que se tornaram depois, profissionais competentes... Naquele fabuloso microcosmo, depositório dos mais belos capítulos da vida botucatuense figuravam ainda, os "intelectuais" (Giuseppe Moscogliato, Giuseppe Pedutti, Francesco Grandi, Giulio Tognoszzi e Francesco Grecco) que periodicamente se reuniam para a leitura da Divina Comédia de Alighieri..."

Um mundo que se realizava na saudade da pátria distante e absorto no dia a dia daquela "comuna brasiliana". Dos que se tornaram sofisticados, aos que conservaram a simplicidade original, como as velhas lavadeiras italianas da Curuzú entre elas a velha Eugênia Rosseto Paniguel, que comandava uma verdadeira "industria de limpeza"  à frente de suas filhas Julia, Augusta e Catarina, servindo às famílias que iam se tornando abastadas no próspero comércio do café.

A Curuzú, como rua central (e comercial) da cidade de Botucatu, manteve-se vigorosa até por volta da crise do Café. Depois foi perdendo o viço, fechando seus negócios, enquanto as Fazendas iam se desfazendo, aos poucos, de seus colonos - de todas as nacionalidades. Foi um tempo longo, que escorreu quase silenciosamente. Fechadas as portas, também aos poucos, das inúmeras vendas, armazéns e outros negócios da Curuzú, os ali residente, foram se dispersando.

Por volta dos anos 50, quase a exatos 60 anos depois de ter perdido a hegemonia para a Curuzú, a Rua Riachuelo, com novo nome (Amando de Barros) voltava a ser a principal rua do comércio da cidade. Hoje, perduram apenas as lembranças desse tempo. Mas, ainda, na Curuzú, pela frestas das janelas entreabertas, nas velhas e antigas casas, rostos sulcados pelos anos, vez ou outra, espiam o tempo e as pessoas, entre o zunido dos coletivos que passam apressados... 



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