Tochas acesas na escuridão da noite

Até onde a memória do centenário ex-escravo alcançava

podia-se ver sua vida de desventuras. Mesmo assim,

Nhô Máximo, encontrou tempo para viver

 

Matriz de Botucatu, depois Igreja São Benedito, primeiro espaço negro da cidade atual praça Coronel Moura, antigo largo da liberdade.

Figura constante na memória dos mais velhos, com uma história que é, ela mesma, reveladora dos comportamentos de nossa sociedade dos fins do século XIX, Nhô Máximo – zelador do antigo Pavilhão Ideal e depois do jornal Folha de Botucatu, relata numa entrevista ao jornalista Francisco Messejana detalhes de sua vida. Editada em junho de 1939 a matéria revela a força dos anos pesando sobre o ex-escravo, o duplo rapto sofrido (na África e depois na Baía), mostrando métodos que podem ter sido mais constantes do que se pensa, na formação da mão de obra escrava, aqui da cidade. Nesta entrevista colhida das páginas dos arquivos do Centro Cultural de Botucatu, Nhô Máximo nos trás fragmentos de fatos que a história da cidade não pode esquecer. 

 

"Todos nós o conhecemos. Faz parte da vidinha da cidade. Encurvado, andando devagar, arrastando longas chinelas, tamanco ou duas botinas, diferentes, nos pés, rosto largo, com duas rugas bem fundas na face escura, nariz chato, chapéu caído para a testa, deixando atrás, à mostra, os cabelos curtos e muito brancos, Nhô Máximo, apesar dos anos, é forte e jovial.

Domingo último, pelas duas horas mais ou menos, quando o sol incendiava a cidade e uma aragem quente levantava das pedras, descíamos pela artéria principal da cidade.

Na esquina da travessa Monsenhor Ferrari, olhamos para baixo e, sentado na entrada da Folha de Botucatu, divisamos a figura encouchada do preto amigo. Ocorreu-nos dar com ele dois dedos de prosa e descemos.

Não com facilidade ele falou da sua vida. Diz que não gosta de falar dela. Sofreu muito. O pessoal de agora não sabe o que foi aquele tempo, mas, assim mesmo, acha que o passado era melhor.

Quando Nhô Máximo ameaçou de parar a sua conversa, passamos-lhe para mão uma gorgetinha e ele, olhando para os lados, passou a responder às perguntas que lhe fazíamos.

Nasceu na África, longínqua e misteriosa e veio para o Brasil, no fundo de um barco, junto com a negrada acorrentada.

Na Baía, onde chegou, serviu no cativeiro. Por esse tempo falava-se muito em Garibaldi e Nhô Máximo conta que, uma noite o vilarejo em que morava regurgitou de gente. Tochas acesas brilhavam na escuridão da noite, sinos bimbalhavam festivos e a massa compacta de gente gritava alegremente

Pelas ruas: era o enterro do guerreiro italiano que se fazia.

E ele, sem perceber, quase vai cantarolando estas linhas que pude apanhar apressadamente:

Garibaldi já morreu

Foi dar contas a Deus

Da farinha que comeu

Da cachaça que bebeu.

Ele ri, agora, satisfeito, com o lábio inferior pendido para baixo, alegre da memória o ter ajudado. O velho perdeu a memória dos anos, mas atentando-se nesse fato, uma vez que não haja engano da parte dele, mais ou menos calcula-se a sua idade: Uma festa festiva na Baía e o enterro de Garibaldi só poderiam ser realizados pôr ocasião da sua queda no Rio Grande do Sul. Ora, os revoltosos foram vencidos em fevereiro de 1845 e, se Nhô Máximo era uma criança de oito anos, conclui-se que esteja hoje com 102 anos, tendo nascido, portanto, em 1837.

Na Guerra do Paraguai, juntamente com seu pai, participou em diversos setores.

Ainda estava na Bahía quando, uma noite, uma turma de capangas caiu sobre ele e mais companheiros, amarraram-nos e conduziram-nos, depois de muitos dias de viagem, para o Estado de São Paulo. A emancipação dos escravos não tardou e passou a trabalhar como colono nessa zona. Abriu fazendas perto de Avaré e derrubou mato no sertão. Foi guarda de cavalos de um rico fazendeiro que possuía um trole único em toda a região.

O preto continua a falar, pausadamente, gaguejando de vez, sem olhar para o nosso lado e começa a recordar os primeiros tempos de Botucatu.

Na sua opinião os estrangeiros é que fizeram a nossa cidade. Os fazendeiros ricos iam buscar famílias e mais famílias em São Paulo: "a estrangeirada chegava chucra prestes lado", remata ele, "e vivia aqui sob jugo dos fazendeiros, debaixo de feitores, como no tempo do cativeiro".

O caminho para São Paulo era por aqui (rua Monsenhor Ferrari): "iam de carro de bois buscar mantimentos, ou traziam no lombo da burrada".

A primeira igreja erigida na cidade foi a de São Benedito (ele tira o chapéu, respeitoso, ao falar o nome do Santo), ali onde é o posto de gasolina.

"Tempo bão aquele –um batizado custava 10 réis, um casamento 3 vintém, a gente ganhava uma pataca e vivia com fartura". No Tanquinho era onde se fazia a matança do gado. Nhô Máximo reclama qualquer cousa contra o preço da carne de agora, dizendo que, de primeiro o senhor Avalone dava de graça para os pobres, toda a miudeza do gado.

Comenta algumas figuras do passado de Botucatu : o Capitão Tito, o Peixoto. Fala depois do Bacchi, Salemi e outros que conseguiram se fazer pelo amor ao trabalhado. Chegaram como humildes trabalhadores e hoje são donos de meio Botucatu.

A conversa vai encaminhando para os fatos mais atuais. Fala do prefeito Cardosinho, do progresso de Botucatu, que começou na Rua Curuzú e tão depressa se alastrou.

Partindo lenha, lavando casas, já velho, impossibilitado dos trabalhos mais pesados, foi vivendo. Casou duas vezes e já tem bisneto moço. Segundo seus cálculos Botucatu o hospeda por perto de 60 anos.

O preto olha, com seus olhos castanho-escuros, tira um cachimbo, tosse e cospe: "Gosto mais deste. Desde o tempo do cativeiro que fumo nisto". Conta, depois, que o cachimbo não deixa ir sarro no estômago, "porque fica no cabo".

— "Olha moço, hoje eu perciso i no enterro duma frera Qui morreu, é uma das primera qui veio aqui".

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Levantamos. Quase uma hora passamos juntos. Ele tirou o chapéu, cuspiu de lado e ficou olhando os furos do chapéu e disse baixo: "Tô percisando, também, dôtro cobridô".

Saímos pensativos. Toda uma existência de trabalhos, de sofrimentos, que se vai apagando aos poucos. Viu Botucatu nascer sob seus olhos de africano e entrar no surto progressista de hoje e, ele, sempre ao lado contemplativo par dos seus fatos mais importantes. Nhô Máximo, com sua idade é forte, ainda, e muitos anos ainda pode viver. Quantos filhos da geração de hoje viverão a metade de o negro velho está vivendo?"        28/06/1939




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