Memórias
de
um jovem imigrante
Olimac (Publicado
originalmente na Folha de Botucatu em
13 de setembro de 1947)
1899
Ainda meninote fui morar,
com meus pais, na Fazenda Salto Alto do Lageado. Aquilo para mim era,
naquela época, apenas encanto, poesia, maravilhas. Recordo-me muito
bem... Naquele dia, 1º de fevereiro, um carro de boi nos levou à
Fazenda. A travessa do carro era de taquaras trançadas, com "fueiros"
de madeira amarrados com tentos de couro. Uma vez na sede da Fazenda
veio ao nosso encontro o administrador de nome Rafael Coutrim que
designou ao carreiro Galvão Severino, a morada que nos cabia, à beira
do riacho, adentrando uma capoeira rala. Como fosse a festiva véspera
da festa de Nossa Senhora das Candeias, que então se comemorava
alegremente na roça, o carreiro convidou-me para assistir em sua casa,
à reza, baile e batuque. Fui, de bom grado. A casa de barro, coberta de
sapé, aparecia então toda enfeitada de bandeirinhas de papel multicor.
A esposa do carreiro, dona Sátira, recebia os convidados e designava
seus lugares. Era uma preta alta, risonha, dentes brancos como a neve
que eu vira há poucos meses nos contrafortes dos Apeninos. Deixava de
receber os convidados para correr ao pilão e socar o café, que dentro
em pouco haveria de servir aos presentes. O mais festejado dos
recém-vindos foi o sanfonista Isaías Silvestre, também de cor, alto,
magro, usando um cavanhaque agressivo e difícil de entender pôr ser
completamente gago. Pareceu-me extraordinariamente orgulhoso de sua
sanfona oito baixos. Era oito horas quando o baile teve início.
Uma hora mais tarde, o
preto Serafim Rodrigues, batendo palmas no meio da sala, convidou os
dançarinos para a quadrilhas: "par prá gerá – par prá gerá". Lembro-me,
fielmente, do entusiasmo do marcador, estropiando horrivelmente a
terminologia francesa da dança: "Anavandê – travecê – balancê" e,
depois de uma pausa "travecê, outra veis, balancê, tô ô".
Enquanto apreciava o
andamento da quadrilha, pude enxergar da porta, a chegada do preto
Euzébio da Rocha que sobraçava um grande tambor e vinha acompanhado dos
pretos Marcolino, Francisco, Chico, Ricardo e outros, cada qual
acompanhado, à distância, pela dama respectiva, pôr nomes Prudência,
Izabel, Izaltina, Nhaná, Benvinda e outras.
Num dos cantos do
terreiro, o dono da casa havia preparado enorme fogueira, onde logo
mais o Euzébio foi aquecer o seu tambor. Quando o couro ressecado
respondeu com um som todo especial às suas batidas insistentes, ele
gritou para os demais: "tá tinino" e batia de novo: bum... bum...
bum...e, então, logo o Benedito Roxo, o Chico Ricardo, ensaiando os
primeiros passos da dança, puseram-se a cantar:
"A tinga maringa
Foi linda e donzela
Morreu em Campina
Da febre amarela..."
A cantiga era repetida
muitas vezes, sempre mais forte, pois o número de batuqueiros aumentava
a cada momento. De tempos em tempos o Severino aparecia com um garrafão
de pinga e uma tigelinha de ferro, a distribuir aguardente para os
homens, enquanto sua esposa oferecia café às mulheres. Logo em seguida,
a uns e outros, nhô Bastião e a negra Enriqueta ofereciam fatias de pão
com manteiga. Terminando de beber e comer, reiniciavam-se as danças e
os cantos. Na sala do casebre dançavam-se polcas e outras danças,
enquanto no terreiro alternavam-se canções em conjunto com batucadas.
No meio da madrugada o
sanfoneiro, tocado pelos vapores da pinga somente tocava uma das modas
já ouvidas "pumba... pumba... pumba... pá ..." No terreiro reinava
idêntico entusiasmo e o velho Euzébio, percutindo o seu tambor,
cantava: "Eh... eh... eh! istrela Darva tá... aí... eh... eh!...istrela
Darva taí,,,".
Ao amanhecer, os pretos
que não batucavam e passaram a noite ajoelhados ou sentados ao pé do
fogo, apareceram estranhamente cobertos pôr uma fina camada das
fagulhas de cinza da fogueira quase extinta. Ao romper do sol, nhá
Sátira passou pôr todos uma última bandejada de café com pão e manteiga
e, logo a seguir, os já servidos foram se retirando, agradecendo ao
dono da casa e "salvando" a santa do dia N.S. das Candeias, cuja festa
os deixava em casa, longe do serviço do eito....