Os 100 anos da Velha Senhora

Em 1955 dona Gertrudes Bueno era uma bem disposta botucatuense. Estava viúva, morava na confluência da Visconde do Rio Branco com a Rangel Pestana, numa casa adquirida pelo seu esposo havia 40 anos.

Foi ali que o repórter Benedito Carlos Silveira Martins, do jornal O Correio de Botucatu, foi encontrá-la. Precisou esperar. Dona Gertrudes saíra para fazer o que mais gostava: visitar amigas e bater papo.

O repórter teve tempo para observações e descreveu: sua casa era "um prédio com todas as características das construções dos primórdios de Botucatu, paredes de taipa e interior dividido em quatro cômodos".

 

 

 

 

 









José Joaquim Bueno
, o menino da foto, acompanhou sua bisavó na cerimônia de hasteamento da Bandeira. Está aí ao lado de Emílio Peduti, Milton Mariano e de seus familiares. Lembra-se quase nada do dia. Hoje, já com cinqüenta anos e trabalhando em uma pequena marcenaria de sua propriedade na Rangel Pestana, lembra apenas que... "dona Gertrudes morreu muito depois. Eu me lembro de seu velório, aqui na casa ao lado, que era dela mesmo. Veio muita gente. Eu já tinha uns 11 anos e isso eu consigo lembrar. Ela morreu com 107 anos. Veio toda a vizinhança aqui da rua".

Dona Gertrudes chegara a Botucatu em 1871, vinda com seus pais, Mariano Leite e Maria Rita Paes, de Tietê. Tinha 16 anos de idade, já que nascera naquela cidade a 2 de julho de 1855.

Aqui, casou com Antonio Bueno, fez família, criou filhos netos e bisnetos. Quando a Comissão Executiva das Comemorações do Centenário foi convidá-la para ser homenageada, tinha 8 netos e 6 bisnetos e queria ser acompanhada por todos.

Ela e o mais novo dos bisnetos José Joaquim Bueno, estão na foto ao lado de Milton Marianno e Emílio Peduti. Ela era a homenageada como a mais antiga moradora da cidade e fora convidada para fazer parte da cerimônia do Hasteamento dos Pavilhões, na abertura do dia 14 de abril.

Foi para apresentar a conterrânea para os que, porventura, não a conhecessem, que o jornal o Correio pediu que ela falasse sobre Botucatu de sua época: "Quando vim para cá, Botucatu era um vilarejo, que tinha só duas ruas – a do Curuzú e a do Comércio. Verdadeiras estradas poeirentas onde transitavam as velhas carretas, as boiadas... e onde se localizavam as casas de negócios da Botucatu primitiva".

As serenatas de antigamente

O repórter do Correio tinha interesses específicos. Alfinetou a velha senhora para que dissesse algo de sua juventude e perguntou das serenatas. Ela deu detalhes: "...as vezes acordava altas horas da noite ouvindo o pontear das violas e as vozes dos seresteiros. Havia então as corridinhas das moças da casa para as janelas, que entreabríamos curiosas, para reconhecer os moços que cantavam. Os cochichos e as risadas só terminavam quando do quarto de nossos pais vinha ordem de voltar para a cama. Atendíamos com tristeza e, sob a coberta ouvíamos ao longe a música que se distanciava. Havia, ainda, os grupos de jovens seresteiros, que se reunia em frente à Igreja de São Benedito, naquele tempo localizada onde hoje está o Cine Paratodos, cantando a noite inteira...

Os Chafarizes

Benedito Carlos, o repórter do Correio, quer saber mais e convida a velha senhora a buscar pela memória. "E os chafarizes, dona Gertrudes? O velho Chafariz fornecia água potável para as famílias da Botucatu antiga. De longe vinham os moradores com vasilhame para apanhar água destinada aos velhos potes de barro. Não raro, eram as moças as encarregadas da água nos lares. Com o pretexto de ajudar as moças, iam os rapazes se postar nas imediações do Chafariz, dando início aos tímidos e românticos encontros. Naturalmente a ajuda só ia até perto das casas das moças, pois naqueles tempos os velhos não eram de brincadeira".

As Velhas Igrejas S. Benedito e Santa Cruz

"Nesta última, diz dona Gertrudes, localizada no meio do jardim (atual Bosque) havia, também, um coreto e ali as moças do século passado (referia-se XIX) faziam os seus passeios aos domingos, através de filas de rapazes, tal e qual vemos hoje nas noites da Rua Amando de Barros. (dona Gertrudes referia-se ao "footing", um costume que sumiu de Botucatu, onde foi praticado, aos domingos e feriados, sucessivamente, na Amando de Barros, na Fonte Luminosa após inaugurada e nas quermesses das várias Igrejas, até desaparecer no início da década de 70.)

O Dr. Costa Leite

Dona Gertrudes privou por muito tempo com o fundador da Santa Casa de Misericórdia, Dr. Costa Leite, quando trabalhou naquele hospital da pobreza. "... de onde, até hoje (1955), recebe, a título de pensão, a quantia de cem cruzeiros mensais, quantia irrisória, para nossos dias...".

Circos e Professores

Destes, dona Gertrudes premiou o repórter com algumas novidades: dos primeiros, adiantou, era a única diversão de sua juventude e dos jovens do lugar. E que os mesmo costumavam ser armados ao lado da Igreja Santa Cruz. Era um tempo muito antigo mesmo. O Largo Santa Cruz, hoje Jardim do Bosque, foi o centro da vila até 1898, aproximadamente. Ali existia a Igreja de Santa Cruz, a primeira Cadeia e depois a Casa da Câmara. A segunda cadeia da cidade foi construída em 1898, em outro lugar, a Igreja ruiu depois de ser abandonada ainda na década de 90 do século XIX e a Câmara mudou, insistentemente, de lugar.

Sobre os professores Dona Gertrudes lembrou-se de dois deles, talvez dos que mais tenham lhe ajudado, a educar os filhos: "um que lecionava na Rua Curuzú, de nome Galvão e outro conhecido como Manequinho Mestre... em cuja escola matriculou seu filho mais velho, pagando – pasmem os leitores – a quantia de dez mil reis, por trimestre".


Benedito Carlos Silveira Martins era o repórter do Correio de Botucatu, em 1955. Hoje na cidade, após quase cinqüenta anos, fala sobre seu trabalho: "O historiador Figueiroa nos devolveu 47 anos que, pensamos, estivessem perdidos. A reportagem, que tão bem ele examina, foi parte de uma das fases da minha vida. Havendo nascido jornalista, as contingências da vida levaram-me para outros setores. Todavia, o pequeno período em que exerci a nobre profissão, foram essenciais à amoldagem do meu caráter. A descoberta do culto historiador remeteu-me ao convívio de tantas e tantas pessoas, que já aqui não mais estão. Lembro-me com clareza do amor que D. Gertrudes Bueno demonstrava por Botucatu. Uma grande lição, que não deveria ser esquecida. Não havendo "nascido naquela serra" ...mesmo assim sinto-me um botucatuense agradecido à terra que tão generosamente me acolheu. Saudades minhas, progresso à minha cidade!"




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